quinta-feira, 7 de abril de 2011

Relato pessoal sobre o espetáculo teatral Luz Negra, por Elaine Cardim

Ao entrar no teatro, a luz verde, acinzentada pela fumaça, me transportou para um lugar que não este da realidade. Depois, na escuridão, uma profusão de palavras ditas por várias vozes ansiosas (ou seriam apenas duas?) que não estabeleciam diálogo algum. Quando a luz revelou, sombriamente, o cenário e as cabeças cortadas no chão, fui invadida por uma série de imagens e sensações que guiaram minha leitura sobre o que estava vendo.
Que lugar seria este? Um deserto, um lugar do nada? Seria real? A árvore seca me remeteu à Esperando Godot (Samuel Beckett). Estariam também essas cabeças esperando por algo?
Com as cabeças cortadas, paralisadas por sua condição de sem corpos, os olhos e a voz eram os únicos meio de expressão do homem e da mulher. O que aconteceu com eles? Por quê cortaram suas cabeças? Seriam bandidos, heróis ou simplesmente vítimas de algum infeliz acaso? Apresentaram-se, não era um casal. Não se conheciam antes. Mas, agora, só tinham a eles próprios e, como não morriam, ou morriam muito lentamente – já que as cores de suas faces apresentavam sinais de podridão de sua carne – uma relação de mútua dependência, para assegurar a companhia no momento de morte, se estabelecia. Mas o vínculo era de ordem prática, um acordo estabelecido entre eles para encontrarem uma possibilidade de saída desta condição: juntos iriam gritar, chamar a atenção de quem se aproximasse para que visse que eles estava ali. Não parecia haver nenhum sinal, nenhuma possibilidade de afeto entre as cabeças. Talvez pelo fato de não poder se aproximar, nem se afastar, um do outro. Talvez, pela falta de seus corpos, estavam isolados da natureza dos sentimentos.
Mas, como dizem os cientistas, os sentimentos não são produzidos pelo cérebro? Mas, então, sem os corpos, as cabeças não seriam como tubos de ensaio isolados no laboratório, sem possibilidade de despejar seu conteúdo e, assim, produzir a reação necessária para existência de sensações? Então, apesar de vivas, as cabeças, cortadas, pareciam desprovidas de qualquer sentimento – inclusive diante de sua realidade de vida/morte.
Combinam o grito. Mas o quê gritar? A sugestão de gritar “merda!” foi substituída pela palavra “amor!”. Esperam alguém se aproximar. A cabeça-mulher, numa impressão duvidosa, parece sentir o corpo mexer. Será uma lembrança? Sutilmente vemos um braço se mexer no cenário. A paisagem muda. No lugar do nada surge da terra um imenso corpo inteiramente branco sem cabeça. Essa imagem cria em mim o espanto.
Aceito a existência das cabeças cortadas, mas fico perplexa ao ver o corpo sem cabeça. O cenário, que expõe as cabeças dos atores, me possibilita imaginar seus corpos sentados dentro da estrutura criada, mas como o ator, em pé, fica sem cabeça? Já vi inúmeros filmes com personagens sem cabeça, cabeças cortadas sendo erguidas pelos cabelos, corpos mutilados etc. Atualmente, um sem número de recursos tecnológicos lança o cinema em um universo criativo sem limite. Mas a condição de acontecimento do teatro, estabelecida no espaço-tempo presente, entre o ator e o espectador, construiu em mim outra leitura dessa imagem.
Pela impossibilidade de ver o que via, o corpo sem cabeça vivo revela em mim uma essência espiritual. Ele não é humano. Há algo de divino em sua condição. Então, através do jogo teatral estabelecido neste espetáculo, o corpo se impõe sob as cabeças. Seu tamanho, a possibilidade de locomoção e seu aparecimento mágico me revelam um poder de manipulação que parece ter sob as cabeças cortadas (fragilizadas pela impossibilidade de ação).
Após o seu surgimento, o corpo pega um elemento vermelho, que estava preso na árvore seca, e coloca-o na boca da cabeça-mulher. Com este gesto, elimina da cabeça uma das duas possibilidades de sua expressão. Em outra aparição, tira o objeto vermelho da boca e revela um lenço vermelho que, agora, cobre toda a cabeça-mulher. Ela não pode ver mais. Numa referência dialética ao fruto bíblico, retirado da árvore do conhecimento, a mulher come a maçã, mas não enxerga a sua nudez. Diante da revelação dos mistérios divinos, ela passa a conhecer sua condição, porém se cega, imobiliza-se. A ausência de seu corpo (imagem e semelhança divina) lança a cabeça em um limbo onde o conhecimento ecoa no vazio de qualquer sentido.
O corpo do ator que, agora sentado, revela sua cabeça, não tem face. Seus gestos, com apenas um dos braços, são sutis e parecem desenhar no espaço suas palavras. Assim, transforma a energia vibratória do som em realidade concreta para os olhos. Suas palavras são corporificadas. A forma como ele está sentado me remete ao Adão de Michelangelo. Então, sinto que ele não é o próprio deus. Talvez um intermediário ou, talvez, o corpo sem sua cabeça tenha esta característica própria de espiritual. Seja como for, ele também não parte. Permanece no lugar desértico junto com as cabeças. Cabeça e corpo, cenicamente separados, são fantasmas de sua natureza indivisível.
Ao final, o quadro vivo das cabeças cortadas gritando “amor!” provoca uma sensação de que o que vejo pertence à esfera de uma essência humana. Apesar de conseguir visualizar esta imagem, somente através do jogo teatral que o espetáculo propõe fui lançada em seu espírito. Assim, toda forma de descrevê-la será inútil.
Um trabalho realmente belo que enriquece o panorama do nosso teatro ocidental. Parabéns aos artistas de Luz Negra. Espero que o espetáculo circule por muitas praças!!!

Elaine Cardim é Atriz, Produtora Cultural e Arte-Educadora. Bacharel em Interpretação Teatral, pela Escola de Teatro da UFBA/1999 onde, atualmente, é professora substituta. Estudante do Mestrado no Programa de Pós- Graduação em Artes Cênicas da UFBA. Ganhadora do Prêmio Braskem de Teatro 2008 como Melhor Atriz Coadjuvante com o espetáculo “Policarpo Quaresma” com direção de Luiz Marfuz. Entre os espetáculos em que atuou, destacam-se: “InSônia”, direção Hebe Alves; “A Era Clown – É Tempo de Palhaço”, direção Alexandre Casali; entre outros. 

Um comentário:

  1. O espetáculo é tão forte e profundo que não saberia descrevê-lo, assim, em palavras, mas o relato acima diz muito do que também senti e compartilho. Belo, tocante e provocante. Teatralmente inquietante. Parabéns!!!!!!

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